novembro 24, 2008

Estupro "light",

por Samantha Buglione
*Professora de direito e bioética, doutora em ciências humanas


O estupro só é estupro, no sentido hediondo do ato, se tiver violência física ou morte. Se for só o estupro, o "estuprinho", não será hediondo. É a máxima do "estupra, mas não mata". Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que resolveu abrandar as penas dos crimes de violência sexual.

Conforme a lei 8.072/90, são hediondos os crimes como assassinato (quando praticado como grupo de extermínio e latrocínio), extorsão qualificada por morte, seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor e epidemia com resultado de morte. Em 1999, o atentado violento ao pudor passou a ser considerado hediondo só se seguido de morte ou lesão corporal grave; nessa esteira, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fez com que o estupro ficasse "light", ou seja, para ser hediondo precisaria ter as mesmas características. Em 2001, o Supremo Tribunal Federal voltou a determinar a hediondez do crime.

Os crimes que deram razão à recente decisão do TJSP ocorreram em Ribeirão Preto: um caso de estupro durante um assalto e um caso de violência sexual entre homens, na prisão.

A decisão do Tribunal de São Paulo não é original, o estupro "light" já existia. O que fica evidente, mais uma vez, é o paradigma que alimenta a compreensão dos desembargadores diante desse tipo de violência.

A violência sexual é aquela que agride diretamente a liberdade sexual e inclui, além disso, violência à integridade física. Há, portanto, duas ordens de crime: um que é contra a integridade física e outro que é contra a liberdade sexual, a autonomia. Apesar disso, esse tipo penal está, no Código, no capítulo dos crimes contra os costumes. O que permite pensar que o principal bem violado não é a dignidade da mulher, o corpo, a autonomia, a liberdade, mas uma moral social específica.

De qualquer forma, exigir que a hediondez da violência sexual pressuponha violência física grave ou morte é ignorar o significado da violência e o impacto dela na vida dos sujeitos. É ignorar que a liberdade sexual, a autonomia e a integridade física das mulheres - que são as principais vítimas desses crimes - são direitos exigíveis.

Nas relações de dominação e violência do nosso tempo, o estupro e a violência doméstica são causas significativas de incapacidade e morte de mulheres, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. As conseqüências são gritantes: a cada cinco dias de falta ao trabalho um é decorrente de violência sofrida por mulheres em suas casas; a cada cinco anos de vida, a mulher perde um ano de vida saudável se ela sofre violência doméstica.

O direito é um campo de prescrição, isso significa que ele define não apenas um dever em relação às ações humanas, mas o tipo de sociedade que queremos. Quando os tribunais brasileiros, com decisões como essa, minimizam e simplificam práticas como a violência sexual, atestam sua incapacidade de observar a diversidade de sujeitos que compõem a sociedade brasileira e, principalmente, os bem jurídicos que deveriam proteger. Dizer que o crime de estupro ou a violência sexual só são hediondos mediante lesão corporal grave ou morte é ignorar o direito subjetivo do sujeito que sofre a ação. É dizer, ainda, que a liberdade e a autonomia sexual são um bem menor. Muito simbólico quando esses sujeitos, como é o caso de Ribeirão Preto, são mulheres e homens encarcerados.

Uma decisão como a do Tribunal de São Paulo está na contramão do que diz a boa teoria do direito e dos direitos humanos. Desde 1995, o relatório da 4ª Conferência Mundial da Mulher, da ONU, em Beijing, China, afirma que "a violência contra a mulher constitui obstáculo a que se alcancem os objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz; que viola e prejudica ou anula o desfrute por parte dela dos direitos humanos e das liberdades fundamentais". Em outras palavras, isso significa que a violência, independentemente de sua escala e natureza, limita as possibilidades de igualdade e a liberdade. Impede que as pessoas desenvolvam suas potencialidades e sua personalidade e se realizem como sujeitos morais.

Exigir escalas em crimes como estupro e violência sexual é dizer que é possível escalonar a dignidade humana.


Fonte: A Notícia

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