agosto 11, 2009

lançamento do livro Damião Ximenes

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"Este volume estampa, com pequenas alterações, a dissertação com a qual Nadine Borges graduou-se Mestre no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense. Tive a honra de, ao lado de seu ilustre orientador, o Prof. Marcelo Pereira de Mello, e do querido Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles, integrar a banca examinadora.

Este livro não contém apenas, o que por si só recomendaria sua leitura, o relato dramático do caso Damião Ximenes, ou seja, daquele paciente encarcerado, imobilizado, espancado e morto no interior de um hospital psiquiátrico situado em Sobral-CE, em outubro de 1999. O caso, submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, resultaria na primeira condenação formal do Estado nacional brasileiro.

Tampouco se restringe o livro a oferecer, o que não seria pouco, um amplo painel, histórico e normativo, sobre o percurso e a amplitude deste ramo jurídico que logrou destacar-se do direito internacional público, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, acompanhado de uma radiografia estrutural do sistema interamericano de direitos humanos praticamente legendada por “instruções ao usuário”: o leitor aprenderá as rotas de acesso a tal sistema, os níveis nos quais ele opera (Comissão, Corte, Instituto) e os pressupostos de admissibilidade para uma reclamação.

O leitor tem em mãos muito mais do que isso. A Autora efetuou sua pesquisa com um marco teórico definido e coerentemente invocado, que respalda a narrativa do caso e a reflexão jurídica que ela suscita. Encontra-se igualmente no trabalho a informação precisa sobre o estado da arte da jurisprudência brasileira neste “parto às avessas” que tem sido, e ainda é, a difícil incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao ventre de nosso ordenamento constitucional. Ao mesmo tempo em que o trabalho alavanca a capacidade reivindicatória de brasileiros violentados em seus direitos humanos, são revelados os porões deste sistema penal paralelo que, ao largo de qualquer controle e das mais elementares garantias, ainda subsiste na desqualificação jurídica e no confinamento psiquiátrico de réus e pacientes.

Entre penalistas e criminólogos críticos, tem sido comum a pergunta sobre as razões do descompasso entre inegáveis avanços na institucionalização psiquiátrica – inclusive entre nós, na legislação e nas práticas – e o atraso genocida dos sistemas penais. Bem, os tataranetos libertários de Pinel concentraram seu ativismo e suas manifestações ainda sob Estados de bem-estar, e suas análises buscavam as raízes políticas da questão. Em 1967, Franco Basaglia escrevia:

“se a psiquiatria desempenhou um papel no processo de exclusão do doente mental quando forneceu a confirmação científica para a incompreensibilidade de seus sintomas, ela deve ser vista também como a expressão de um sistema que sempre acreditou negar e anular as próprias contradições afastando-as de si e refutando sua dialética, na tentativa de reconhecer-se ideologicamente como uma sociedade sem contradições” (A Instituição Negada, trad. H. Jahn, Rio, 1985, ed. Graal, p. 124).

Mas, nesses tempos desventurados do neoliberalismo, cuja agonia – iniciada com a quebra dos ilusórios mercados de derivativos – será longa e mistificada, o maior encarceramento da história ocidental não pode ser visto como a fantástica contradição que é: trata-se de controlar pela criminalização os contingentes humanos miserabilizados, desempregados e marginalizados pelo mesmo empreendimento neoliberal. Ao contrário, o bem sucedido esforço dos meios de comunicação e da academia colaboracionista para ocultar as raízes políticas e econômicas do fenômeno detém sua análise ao nível de um moralismo tosco que sustenta um senso comum criminológico positivista e estéril, onde a ignorância e o preconceito disputam o protagonismo. A legitimação dos sistemas penais no capitalismo de barbárie é patrocinada não apenas por seus atores políticos tradicionais, jornalistas policialescos, deputados conservadores que praticam o mais desavergonhado populismo penal, mas também – e principalmente – por gente que já teve algum nível de compromisso progressista, para ficar numa expressão bem ampla. Criou-se uma mentalidade que, a despeito da significação das estatísticas, da realidade opressiva e da seletividade do sistema penal, vê na pena uma divindade provedora, capaz de prevenir e resolver todos os conflitos sociais, capaz de obscurecer as contradições irredutíveis da sociedade do individualismo possessivo.

Esta mesma mentalidade já convertera o discurso dos direitos humanos num instrumento de etnocentrismo jurídico, o qual, quando presentes argumentos substanciosos – como o petróleo do Oriente médio – se converte em imperialismo jurídico. “Democratizem-se ou morram” poderia ser a divisa bélica deste movimento, que na última invasão liquidou a autoridade moral máxima do sistema planetário de direitos humanos, a Organização das Nações Unidas.

Por todos esses impasses e perplexidades, o livro de Nadine Borges merece leitura e reflexão".


Nilo Batista- Titular de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro

http://www.revan.com.br/catalogo/0406a.htm

1 comentários:

Tófoli disse...

Livro relevante. Vale somente comentar que a morte de Damião levou em 2000 ao fechamento do hospital psiquiátrico que havia em Sobral e a sua substituição por uma premiada rede de atenção integral à saúde mental.