maio 31, 2009

Série de reportagens mostra conquistas e derrotas na luta pelo fechamento dos manicômios no Brasil

Um quadro desolador

Pesquisa do Ministério da Saúde revela que hospitais psiquiátricos remanescentes penam com graves deficiências de pessoal e com péssimos projetos terapêuticos para desinternação dos pacientes

Renata Mariz
Publicação: 29/05/2009
Atualização: 29/05/2009

Série de reportagens mostra conquistas e derrotas na luta pelo fechamento dos manicômios no Brasil


Uma blitz do Ministério da Saúde nos hospitais psiquiátricos, feita desde 2002 a cada 18 meses, revela um quadro desolador. Nos cinco itens considerados mais importantes na verificação, a avaliação média é de regular para baixo. Para cima, há os conceitos bom e excelente — pouco presentes na edição mais atualizada do levantamento, intitulado Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (Pnash/Psiquiatria), realizado entre 2006 e 2007 (leia quadro). Para se ter ideia, 67% das instituições ganharam menções, no que diz respeito aos recursos humanos, entre regular, ruim ou péssimo. Mesmas notas receberam 64% dos hospitais em outro fator primordial para a recuperação do paciente, o projeto terapêutico visando a desinternação.

“O Pnash faz exigências mínimas da qualidade que o hospital deve ter. Ainda assim, a situação é complicada”, diz Pedro Gabriel, coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde. Apesar de ser uma avaliação baseada em normas técnicas, sobram críticas a respeito dos critérios utilizados. “Como é que uma comissão vem fazer vistoria em um hospital psiquiátrico sem que haja um psiquiatra na equipe?”, indaga Gilberto Brofman, diretor do Hospital São Pedro, em Porto Alegre (RS), um dos grandes manicômios do século passado — e ainda hoje uma enorme estrutura.

Consultora do Ministério da Saúde, Karime Porto retruca. “A presença do psiquiatra não é uma obrigatoriedade, embora ele integre algumas equipes. O olhar de um enfermeiro, às vezes, é mais valioso que de qualquer outro profissional”, diz ela. Para Brofman, o Pnash, assim como toda a reforma psiquiátrica, está carregado de ideologia. “Demonizaram a internação como se o doente mental não precisasse de cuidados integrais, em determinados momentos, assim como qualquer paciente”, ataca.

O baixo valor da diária repassada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é outra queixa comum dos dirigentes de hospitais. “Hoje, pagam R$ 33 por paciente internado. Como querem que funcionemos bem? Estamos em vias de fechar as portas”, reclama Jurema Pires, uma das proprietárias do Sanatório São Paulo, localizado em Salvador (BA), que em menos de um ano extinguiu 84 leitos. A unidade, única particular credenciada ao SUS na capital baiana, funciona em alas que muito lembram os pavilhões dos antigos manicômios. Janelas quebradas e infiltrações nas paredes são comuns.

Pouco menos sombrio, mas não totalmente salubre, é o cenário que abriga pacientes de convênios médicos ou particulares no São Paulo. “Apesar de ficarem em espaços físicos separados, não fazemos distinção entre eles e os do SUS”, garante Jurema. Ela reconhece, entretanto, que ao menos na medicação há diferenciação. “Claro que os particulares têm acesso a remédios mais modernos, porque o convênio paga”, afirma a diretora. Ela não autorizou a reportagem a registrar imagens do hospital, que em 2003 foi ameaçado de descredenciamento.

Fragilidades
As mais graves fragilidades apontadas pelo Pnash 2006/2007 — na área de recursos humanos e nos projetos terapêuticos — são reconhecidas pelas instituições. No Hospital Especializado Lopes Rodrigues, que fica em Feira de Santana (BA) e hoje cuida de cerca de 300 pacientes, quase metade dos 30 enfermeiros está afastada por motivo de saúde. “Nossos quadros encontram-se envelhecidos e adoecidos”, lamenta Rita Gomes, coordenadora de recursos humanos, há mais de 20 anos no hospital.

Medicamentos e terapia compõem o tratamento em quase todos os hospitais. Existem oficinas de trabalhos manuais, expressão corporal, teatro. Entretanto, quase sempre ficam em espaços improvisados, às vezes deteriorados. Outro local muito comum, na busca da ressocialização e do aumento da autoestima, é o “salão de beleza”. Enquanto os homens se restringem a cortar o cabelo e fazer a barba, mulheres abusam dos esmaltes e até de tinturas para esconder os fios brancos. O público feminino também se envolve nas oficinas culinárias com certo interesse.

Nesse período, muitos pacientes estão preparando bandeiras e balões para as festas de são-joão. Graças à mobilização de funcionários, datas comemorativas não passam em branco nos hospitais. E até fora deles. Há mais de 10 anos, a micareta de Feira de Santana tem um bloco muito especial. O Loucos pela Vida sai sempre no primeiro dia da folia, composto por internos do Lopes Rodrigues e servidores. “É uma festa e uma forma de inseri-los, ainda que parcialmente, na realidade da cidade. Eles adoram”, conta Rita.


Condenação Internacional
Em 2009, a morte de Damião Ximenes, assassinado dentro de uma clínica psiquiátrica na região de Sobral (CE), completa 10 anos. A violência contra o rapaz que tinha transtorno mental tornou-se emblemática porque foi o primeiro caso brasileiro a chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em outubro de 2004. Por unanimidade, os juízes condenaram o Brasil por violações de direitos humanos, obrigando-o a garantir celeridade e punição dos responsáveis pela tortura e morte de Damião. Até o momento, porém, os dois processos — um na vara cível e outro na criminal — permanecem sem sentença. “Se o caso de Damião, que teve uma condenação internacional, continua perdido no mar de processos da comarca de Sobral, imagine outras ocorrências”, lamenta Renata Lira, advogada da ONG Justiça Global.

Deficiências
Pesquisa revela maiores problemas dos hospitais psquiátricos brasileiros:

Recursos humanos
# 67,5% dos hospitais têm menção de regular para baixo
# 38,5% estão com notas de ruim a péssimo

Projeto terapêutico/ Alta hospitalar
# 64% estão com menção de regular para baixo
# 32,4% foram avaliados entre ruim e péssimo

Alimentação dos pacientes
# 76% têm menções entre bom e o regular

Condições para atendimento de intercorrências clínicas
# 54% foram avaliados entre regular e ruim

Reclamações de falta de vagas
São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco reúnem, juntos, 58% dos quase 37 mil leitos psiquiátricos no Brasil. E são desses estados, curiosamente, as maiores queixas de falta de vagas para internação. Ao mesmo tempo em que reivindicam melhorias nos hospitais, familiares de pacientes se queixam do fechamento das unidades. “Não queremos qualquer buraco. Mas é preciso repensar essa política, que deixa o doente mental sem opção”, reclama Zorete Andrade da Silva, da Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil, com sede no Rio de Janeiro.

O Ministério da Saúde refuta a reclamação. “Não existe falta de leito em hospital psiquiátrico no Brasil. Estão escassas vagas em hospitais gerais, faltam Caps (Centros de Atenção Psicossocial), falta cuidado na atenção básica. Isso é verdade. Mas em unidades psiquiátricas, não”, afirma Delgado, coordenador da saúde mental da pasta.

Rogélio Casado, psicólogo especialista em saúde mental do Amazonas, onde há poucos leitos psiquiátricos, concorda. “É preciso entender o sentimento das famílias desassistidas, mas também há o outro lado, o da indústria da loucura”, diz, referindo-se aos interesses dos hospitais de se manterem no centro do atendimento. A Federação Brasileira de Hospitais foi procurada, prometeu uma resposta, mas não o fez.

Violações continuam
A situação atual não é nada quando comparada à crueza das últimas décadas do século passado, quando morreram, só no manicômio de Barbacena (MG), cerca de 60 mil pessoas, cujos cadáveres eram vendidos a faculdades de medicina de todo o país. Os abusos, maus-tratos e a omissão, muitas vezes fatais, atravessaram o tempo e ocorrem até hoje, adverte Renata Lira, advogada da ONG Justiça Global. A entidade relata cinco casos recentes de assassinato em clínicas psiquiátricas. Um deles é o de Ana Carolina Cordovil Heiderich Silva, vítima de transtorno de comportamento, que morreu em dezembro de 2006, aos 18 anos, dentro da Clínica de Repouso Santa Isabel, em Cachoeiro do Itapemirim (ES).

A mãe da garota, Nercinda Clareminda Heiderich, afirma que viu Ana Carolina pela última vez no dia da internação, em 26 de outubro de 2006. Na entrevista inicial, informou ao médico que ela era alérgica a haldol, medicamento muito utilizado por pacientes com transtornos mentais. Depois disso, tentou inúmeras vezes visitar a filha, mas sempre era aconselhada a não fazê-lo, “para não atrapalhar o andamento do tratamento”.

“Eu ligava cerca de três a quatro vezes por dia e só recebia boas notícias. Diziam que ela estava bem, mas que pacientes não podiam falar pelo telefone”, lembra. Nove dias depois da internação, Nercinda exigiu, gritando, a visita. Foi quando soube que Ana estava morta. “Consegui o prontuário e vi que o médico não só prescreveu haldol, como em doses altíssimas e injetadas”, conta. A Justiça Global vai assumir o caso para exigir providências. “Quase sempre as denúncias que recebemos são contra clínicas privadas que têm leitos do SUS, como essa Santa Isabel”, diz Renata

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