Malu Fontes
Ela completou sete anos de idade na última sexta-feira e passou os últimos quatro anos dentro de estúdios de televisão sendo adestrada para ser uma estrela mirim, ou seja, mais da metade de sua vida ainda tão curtinha, entre a Rede Record e o Sistema de Televisão Brasileiro (SBT). Nos últimos dois anos, tornou-se um fenômeno, a grande estrela eleita por Sílvio Santos para enfrentar a concorrência, desde que deu um drible em Raul Gil, de quem a menina era assistente de palco desde os três anos de idade na Record e a travestiu de uma versão tupiniquim de Shirley Temple, a garota prodígio que encantou os americanos e caiu no anonimato tão logo cresceu.
Inicialmente, os telespectadores mais adocicados que não podem ver um rostinho infantil e gracioso na TV ficaram embasbacados com aquela criança vestida de princesinha, com vestidos infantis à moda clássica, cachinhos românticos impecáveis e sapatos de verniz. Tudo bem que o SBT, assim que surrupiou a menina da emissora concorrente tratou logo de repaginá-la. Deu uma alisadinha básica nos cabelos, antes um pouco mais crespos, aplicou um baby liss nada discreto para deixar os inocentes cachos artificiais com aparência de naturais e, sim, não livrou a menina de umas camadinhas de tinta de cabelo, deixando as madeixas mais escuras que o castanho mais claro original.
CRUEL - Entretanto, mais recentemente, o que era depositado na conta da graciosidade, da espontaneidade da menina ou do seu talento para fazer rir com sua inocência vem se transformando em desconforto para os telespectadores mais atentos à preservação do bem estar psíquico das crianças, em críticas por parte dos mais conservadores e em manifestações de repúdios e ameaças de intervenção por parte do Ministério Público. Literalmente adestrada dentro de estúdios desde os três anos, agora aos sete anos recém completados na última sexta-feira, Maísa não consegue mais ser vista tão somente com graça pelo público.
Se para alguns ela é uma menina espontânea que diz o que lhe vem na telha, graças à falta de censura que é típica das crianças, o fato é que a televisão é cruel, amplifica tudo e já há telespectadores que a vêm como voluntariosa em excesso, sem limites e, em bom Português, mal educada, deformada pelos adestramentos inerentes ao ritmo industrial da televisão, associados à incapacidade de uma criança desenvolver-se de modo saudável tendo ingressado tão cedo e com tamanha assiduidade no mundo de câmeras, luzes e ação, onde tudo é encenação.
ÂNUS E ANOS - Quanto ao patrão, Sílvio Santos, a condescendência do público vem passando cada vez mais longe quando se trata de analisar os modos como ele trata a menina. Para muitos, trata-se de um apresentador perverso que, em nome dos seus mantras (Quem Quer Dinheiro e Tudo por Dinheiro), vem errando cada vez mais na mão a ponto de submeter Maísa a perguntas e respostas constrangedoras e a fazê-la chorar mais de uma vez em programas recentes. Em um deles, deixou a menina apavorada ao fantasiar um garoto de monstro visando assustá-la. Ao vê-la em pânico e com o choro evidente, passou a gargalhar chamando-a de chorona, medrosa, covarde e cagona (sic), fazendo-a chorar ainda mais e correr para os bastidores se estabanando contra uma câmera.
Em outro programa, prendeu a menina numa mala, fechou o zíper e saiu arrastando-a pelo palco gargalhando enquanto se ouvia na TV os gritos abafados: ‘tá doendo, tá doendo, tá doendo!’ Numa resposta mais do que imprópria para a faixa etária de Maísa, então com seis anos (e mesmo que tivesse 10), quando esta lhe perguntou quantos anos ele tinha, Sílvio Santos achou que poderia fazer uma piada de mau gosto, dessas de quinta categoria tratando-se de uma criança. Respondeu: que eu saiba, só tenho um (numa referência à palavra ânus ao invés de anos). A Shirley Temple do SBT não entendeu, protegida ainda por sua inocência infantil. Diante de cenas dessa natureza, surge um segundo tipo de avaliação da performance do dono do SBT: deve estar caducando.
PERUCA - A menina, depois de quatro anos em treinamento intensivo para ser endiabrada de estúdio em estúdio, não deixa por menos. Anuncia que vai soltar pum com a mesma naturalidade de quem diz estar com sede, diz que precisa tirar a borda da calcinha de dentro do bumbum e, talvez em um ato de vingança merecida, puxou em pleno programa a peruca do patrão (segredo ingenuamente guardado a sete chaves, pois Deus e o mundo sempre souberam que há muito os cabelos do dono do SBT são tão naturais quanto as cerdas das escovas de cabelo). Num programa recente, chamou o patrão de “velho acabado” e de dormir, ele e a mulher, no formol. Uma de suas falas antológicas, no ar, sobre o patrão foi nos seguintes termos: “você é um chato horroroso. Seu velho, sua pele está caindo aos pedaços”. Santos argumentou sem graça que tinha a pele lisinha. Maísa retrucou: “Também, você fez cirurgia!”. E a hipocrisia nacional se regozija sem saber dos seus próprios valores. Se uma professorinha do cafundó coloca uma criança endiabrada de castigo, vai presa por conta do Estatuto da Criança e do Adolescente e todo mundo aplaude. Já Sílvio Santos, tranca Maísa em mala, chama-a de covarde e cagona, coloca-a para chorar de susto, a põe de castigo e a turba gargalha.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA
maio 25, 2009
Criança de proveta de estúdio
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