agosto 18, 2008

Cidadania ameaçada

Ponto de Vista
Artigos de opinião Sexta-feira, 08 de Setembro de 2006

Roberto Pereira*

Há poucos dias, uma decisão judicial da desembargadora Isabel Gallotti, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília (DF), trouxe à discussão uma velha questão que há anos divide especialistas e acirra debates entre militantes do movimento de luta contra a aids, ativistas gays e profissionais da saúde. Ao assinar uma liminar, a desembargadora voltou a conceder aos hemocentros do país o direito de perguntar a orientação sexual dos doadores de sangue, permitindo, assim, a exclusão de doadores que tenham tido relações sexuais com outros homens, ou as parceiras deles, nos últimos 12 meses.

A decisão, equivocada sob o nosso ponto de vista, fundamenta-se na lógica epidemiológica do "grupo de risco", que ainda vigora entre uma parcela dos especialistas, quando a lógica construída ao longo de 25 anos de luta conta a aids é a de enfocar os "comportamentos de risco", independentemente da orientação sexual das pessoas.

Alegam eles, de acordo com a nota técnica da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], que os homossexuais "continuam tendo comportamento de risco acrescido para aquisição de HIV devido à maior freqüência de relações sexuais anais que originam lesões dérmicas, porta de entrada para o vírus, ao risco incrementado de doenças sexualmente transmissíveis (DST), especialmente as que produzem ulcerações, por facilitarem a transmissão do HIV".

Mesmo afirmando não haver nessa decisão nenhuma conotação moralista ou preconceituosa, o simples fato de evocar esse tipo de explicação para justificar tal medida, por si só, evidencia uma intencionalidade desprovida de uma análise embasada em estudos mais apurados e uma visão distorcida da realidade e da natureza humana. Associar a prática do sexo anal unicamente a homossexuais é quase que o mesmo que dizer que masturbação faz nascer pêlos na mão.

A explicação dada para esse procedimento é que com uma triagem prévia, em que pessoas com alto grau de possibilidade de estarem contaminadas tivessem sua doação recusada, as chances de uma eventual "falha" no processo de análise do sangue coletado se reduziriam a níveis mínimos.

Se, por um lado, os dados epidemiológicos ainda confirmam uma maior prevalência de casos de HIV/aids entre homens homossexuais, também é verdade que, por haverem sido os primeiros e mais afetados pela epidemia, foram exatamente os homossexuais aqueles que mais avançaram em termos de estratégias de prevenção. Se for para falar em dados epidemiológicos, eles também apontam uma outra realidade, aparentemente esquecida nessa decisão, que é a feminilização da epidemia, passo a passo com a pauperização da mesma. Seguindo, portanto, a lógica da Anvisa, não seria de estranhar, então, que a mesma proibição fosse estendida a estes segmentos, o que, obviamente, não faria o menor sentido. Na verdade, em se tratando de sexualidade, a vida das pessoas comuns é muito mais complexa e cheia de diversidade do que querem acreditar esses especialistas.

Ao justificar a confiabilidade do preenchimento dos questionários, esquecem-se essas autoridades de que, em se tratando de falar da sua vida sexual, a tendência é omitir aquilo que não queremos socializar ou que acreditamos não ser aquilo que devamos falar. Excetuando-se poucos casos em que a orientação sexual do possível candidato a doador se apresente de forma mais explícita, com absoluta certeza, na grande maioria dos casos, essa orientação pode muito bem ser omitida, como de fato acontece no dia-a-dia, colocando por terra todas as fictícias precauções técnicas.

Da mesma forma, associar a questão da orientação sexual dos doadores ao fato de que um elevado número destes, segundo informa o Ministério da Saúde, doa sangue para receber um diagnóstico de HIV em vez de procurar lugares de assistência especializada, é mais uma estratégia de disfarçar uma decisão moralista e reacionária. Essa prática, que é fato, não é exclusiva dos homossexuais e, portanto, não pode ser usada como suporte técnico na decisão.

Resta-nos, portanto, esperar que a sociedade civil não se cale e continue a lutar em defesa da cidadania plena de todos, independentemente das suas preferências sexuais ou de sua orientação afetivo-sexual. Manter essa discussão na pauta da imprensa, acionar o Ministério Público e organismos de defesa dos direitos humanos, cobrar das autoridades sanitárias explicações mais científicas e embasadas em justificativas mais palatáveis que as que ora se apresentam são medidas que se fazem necessárias na tentativa de reverter essa situação de exclusão.

A expectativa, enfim, é que haja bom senso nesse tipo de decisão e que os futuros doadores, tão ansiosamente esperados pelos bancos de sangue, passem a ser aceitos a partir de critérios menos tendenciosos, tais como estar com boa saúde, ter entre 18 e 65 anos de idade, pesar mais de 50kg, ter repousado bem na noite anterior, não ser portador de doenças infecto-contagiosas, não fazer uso de drogas, não estar em jejum e portar documento de identidade oficial com foto.


* Roberto Pereira é psicólogo, coordenador do Centro de Educação Sexual (Cedus), secretário executivo do Fórum ONG/Aids do Estado do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia. Escreveu este artigo com exclusividade para a Rets.

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