janeiro 06, 2009

Humilhação social: um problema político em psicologia

ÚLTIMA HORA – Atualizado em 12/05/2000
ASPAS
José Moura Gonçalves Filho
"Humilhação social: um problema político em psicologia", copyright Jornal do Federal (informativo do Conselho Federal de Psicologia www.psicologiaonline.org.br/jfcidadania2.html), n° 62, março de 2000

"A humilhação social corresponde a um caso particularmente doloroso de angústia: um afeto mórbido derivado da exposição do homem pobre a mensagens de inferioridade social. Mensagens que lhe são assiduamente dirigidas pelos outros e pela cidade. Mensagens verb ais e também mensagens mudas: são palavras ou são circunstâncias públicas que lhe parecem como o perpétuo lembrete de que não estão em casa.

Simone Weil, quando fresadora na Renault, anotou em seu diário de fábrica:‘Saindo do dentista (terça de manhã eu acho, ou talvez quinta de manhã) e subindo no ônibus, reação estranha. Como eu, a escrava, posso entrar neste ônibus, usá-lo graças a meus 12 centavos como qualquer um? Que favor extraordinário! Se me obrigassem brutalmente a descer dele dizendo que meios de locomoção tão cômodos não são para mim, que eu só devo andar a pé, acho que me pareceria natural. A escravidão me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos. Parece um favor ter momentos em que não preciso agüentar a brutalidade humana.’ [In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p.87. ]

O sentimento da dignidade humana parece desfeito. Deixa de ser espontâneo. É preciso um esforço de atenção para conservá-lo. Um esforço nem sempre eficaz para o humilhado – um cidadão pobre não é humilhado porque sente ou imagina sê-lo: o sentimento e a imaginação estão fincados numa situação real de espoliação econômica e aviltamento público. No humilhado, a submissão é que se torna espontânea. Diríamos melhor: torna-se automática, compulsiva. A humilhação social é, sem dúvida, um fenômeno histórico. A humilhação crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais, é efeito da desigualdade política, indica a exclusão recorrente de uma classe inteira de homens para fora do direito à casa, direito ao trabalho e direito à cidade. Mas é também de dentro que, no humilhado, a humilhação vem atacar. A humilhação assume internamente, como um impulso angustiante, o corpo, o gesto, a imaginação e a voz do humilhado. A humilhação social é fenômeno ao mesmo tempo político e psicológico, caracteriza assiduamente a psicologia do oprimido: desencadeia afetos embriagantes ou paralisadores.

As formas deste desencadeamento podem variar: são lágrimas, o emudecimento, o protesto confuso, a ação violenta e até o crime. Estudantes de Psicologia Social da Universidade de São Paulo foram solicitados a uma experiência de trabalho. Deveriam assumir, por um dia, tarefas simples e subalternas, geralmente desempenhadas por cidadãos pobres.

Um estudante, Fernando Braga da Costa, foi gari na Cidade Universitária, e disse haver se sentido ‘invisível’. Explicou: vestiu o uniforme e trabalhou de manhã – varreu calçadas e ruas, transportou lixo, capinou gramados e retirou o barro acumulado de canteiros. No meio da tarde, passou uniformizado pelo Instituto de Psicologia. Entrou no prédio e reparou o desaparecimento dos acenos (algum gesto ou palavra breve) que, quando estudante, são comuns entre ele e quem cruza. Surpreendeu-se especialmente nas vezes em que passou despercebido por pessoas que estudam com ele: não o viram, passaram ao largo, sem cumprimentos. Era um uniforme que perambulava: estava invisível. Desaparição do homem na tarefa serviçal.

Algumas estudantes foram empacotadoras em supermercado. Mencionaram as senhoras que apressavam os embrulhos, irritando-se facilmente, enchendo-lhes de exigências e reclamações sobre os pacotes. De uma das estudantes um fiscal solicitou com um safanão os seus serviços no caixa vizinho. Nestas horas, sentiam-se entregues ao mando e desmando. Márcia Ferreira Amêndola disse haver se sentido ‘demais visível’. Desejaram sumir, possuir alguma coisa que não fosse acessível ao comando dos outros.

Os pobres sofrem freqüentemente o impacto dos maus tratos. Psicologicamente, sofrem continuamente o impacto de uma mensagem: ‘Vocês são inferiores’. E, o que é profundamente grave: a mensagem passa a ser esperada. Para os pobres, a humilhação ou é uma realidade em ato ou é freqüentemente sentida como uma realidade iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam.

O sentimento de não possuírem direitos, de parecerem desprezíveis, torna-se-lhes compulsivo: movem-se e falam, quando falam, como seres que ninguém vê.

Segue urgente a tarefa de superação política e psicológica da humilhação social, tarefa que é de todos nós: tarefa a que se dedicam os cidadãos pobres, pessoal ou coletivamente, consciente ou inconscientemente, reagindo isoladamente ou em grupos organizados. [O autor é do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP]"

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