fevereiro 20, 2008

Depoimento sem Danos

Artigo extraído do Jornal CRP.RJ

Depoimento Sem Danos


No dia 26 de outubro, de 2007, foi realizado um evento pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro sobre o Projeto Depoimento sem Dano (DSD). O evento contou com a presença do Juiz Titular da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, José Antônio Daltoé Cezar, idealizador do Projeto. Também participou do debate a Promotora da Infância e Juventude de Nilópolis, Rio de Janeiro, Carla Carvalho Leite.

A proposta do DSD é a inquirição de crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual, promovendo, segundo seu idealizador, a proteção psicológica de supostas vítimas. Na percepção de Daltoé, esse tipo de abordagem evitaria a revitimização com as sucessivas inquirições que comumente ocorrem nos âmbitos administrativo, policial e judicial. Ancorado no paradigma da proteção previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o projeto foi recomendado como lei nacional e, nesse momento, está em suspenso no Senado, em virtude de uma moção contrária ter sido aprovada no VI Congresso de Psicologia, realizado em Brasília, em junho de 2007. Defendendo a idéia de punição do suposto agressor, o juiz destaca que o DSD é a realização de “instrução criminal tecnicamente mais apurada e produção antecipada de prova” no processo penal.

Podemos pensar que a fala da criança, prevista como prova criminal, ocupa, no projeto, o território da delação. Fundamentando o direito da criança de ter uma voz no processo judicial, o Juiz Daltoé cita, além do art. 12 da Convenção Internacional de Direitos da Criança, o art. 18 do ECA. Nesse artigo, defende-se que “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Perguntamos: onde estão a defesa, a proteção e a integridade das crianças em tal prática se, em uma espécie de Big Brother, elas são expostas para que uma produção antecipada de uma prova seja realizada no processo? Não estaríamos, nessa posição de inquiridores, reproduzindo uma lógica policialesca-investigativa, tornando-nos os novos policiais especializados, atendendo acriticamente às demandas de uma sociedade de controle neo-liberal globalizada pautada em uma lógica meramente punitiva?

No que se refere ao lugar do Assistente Social ou Psicólogo no projeto, sua defesa é a da interdisciplinaridade. Conceitualmente, um trabalho é interdisciplinar, porque possibilita a escuta de vários saberes na construção de práticas. Isto não significa um profissional assumir o lugar do outro, como prevê originalmente o projeto, indicando que os técnicos, Assistentes Sociais e Psicólogos, façam a inquirição no lugar do juiz.

Um aspecto problemático apontado pelo Juiz, na apuração do fato, é o intervalo de tempo entre o suposto fato e o momento em que este é avaliado. Esse, sem dúvida, é um grande problema. Comumente, a memória da criança é afetada, confundindo-a muitas vezes. Sem contar que, alienada no desejo do adulto, pode, em um momento como esse, com toda essa produção midiática, apenas reproduzir o que esse adulto deseja.

Para corroborar com as suas justificativas ao Projeto, o Juiz exibe o trecho de um depoimento. Juiz fala para o técnico – “Pergunte se ela ficou com raiva ou medo dele?”
Técnico – “Tá com raiva dele?”
Criança – “Sim”.
Em outro momento o técnico disse que “um adulto não pode fazer isso com uma criança” e perguntou se ela estava melhor. A pergunta contrasta com a idéia de uma pergunta aberta, como afirmou ser a prática dos profissionais nesse modelo de atuação. A pergunta feita pelo técnico além de não ser aberta, conduziu a resposta da criança para a suposta ‘raiva’. Uma pergunta aberta seria: “o que você sentiu, quando estava com ele?”. Alias, é um equívoco pensar que medo e raiva são, necessariamente, sentimentos comuns a todas as crianças abusadas. Em perguntas fechadas, a criança pode responder ”sim” ou “não” e encerrar o assunto, especialmente quando este gera ansiedade, como é o caso.

Ainda na defesa do DSD, o juiz destaca os sucessos do modelo em outros países em que esse tipo de inquirição midiática é obrigatória. No entanto, é importante lembrar que já existem, nesses mesmos países, vozes dissonantes sobre tal modelo. Nem todos estão compactuando com esse tipo de prática.

A promotora Carla Leite foca sua fala no direito da criança de ser ouvida, resgatando a tese “no melhor interesse da criança”, destacando que a oitiva da criança é o único meio possível de estabelecer provas. Ou seja, para o operador jurídico, o direito dado à criança é o de condenar seus afetos. Que direito garantido é esse? O de punir tão somente? Ficou visível a dificuldade dos expositores responderem às perguntas feitas no debate pela falta de sustentabilidade desse modelo. A argumentação é frágil e, de forma geral, os técnicos estão se opondo a realizar tal prática. Os CRPs de todo o país, em especial suas Comissões de Direitos Humanos, estão cada vez mais se colocando contrários à realização desse tipo de atuação por parte dos psicólogos, entendendo que, além de ferir a proteção à criança como prevê a lei, fere também a ética profissional do psicólogo.

Eliana Olinda Alves - Conselheira coordenadora da Comissão de Psicologia e Justiça do CRP-RJ e Marcia Ferreira Amendola - Conselheira do CRP-RJ

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