julho 29, 2009

"Aborto: vamos continuar fingindo?"

Reflexões
"Aborto: vamos continuar fingindo?"
Beatriz Galli (Jornal O Globo – 12/06/2009)

O tema do aborto tem dimensões morais, filosóficas, religiosas e éticas que são heterogêneas e, na maioria das vezes, conflituosas. Contudo, é indispensável tratá-lo na esfera da sexualidade humana, como parte da vida das pessoas, onde tais valores são social, cultural e historicamente construídos e têm impacto direto na vida e na saúde das mulheres.

No Brasil, o aborto é crime com duas exceções: no caso de risco de morte para a gestante e em situação de estupro.

Uma reflexão sobre a atualidade e a eficácia da lei penal vigente faz-se necessária diante da realidade do aborto no país. Segundo estatísticas alarmantes do Ministério da Saúde, são realizados no país um milhão de abortos, alçando o tema para o âmbito de grave problema de saúde pública.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reacendeu, no último domingo, a polêmica em relação ao aborto e a polarização constante sobre o tema, pedindo "mentes e corações abertos" para discutirmos o direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Devemos, sim, refletir sobre a melhor forma de lidar com as posições divergentes e acirradas contra ou a favor da sua liberalização.

Obama disse que "toda a polêmica sobre o aborto pode ser amenizada quando ambos os lados prestam atenção nos pontos que têm em comum e não nas divergências insolúveis".
A questão que o presidente norteamericano coloca é bem mais profunda do que ser contra ou a favor por questões religiosas ou filosóficas. Os fatos mostram isso. As mulheres são as que realizam abortos e por isso podem ser criminalizadas se optarem voluntariamente pelo procedimento.

Entretanto, as estatísticas mostram que o fato de haver uma legislação penal restritiva em relação ao aborto não evita a sua prática. Além disso, a legislação que criminaliza é um fator que leva as mulheres a realizar o aborto de forma clandestina, com riscos para a sua saúde e a sua vida.

No Brasil, vários são os exemplos dessa situação. Um deles, talvez o de maior gravidade, é o estado da Bahia, onde a realidade da mortalidade materna confirma, de forma singular, o caráter perverso da criminalização do aborto como fator de sustentação e ampliação das injustiças sociais, alimentadas pela associação estreita entre discriminações e desigualdades de raça e de gênero. A capital da Bahia tem uma taxa de mortalidade materna cinco vezes maior do que o mínimo definido como aceitável pela Organização Mundial de Saúde, que fica em torno de 10 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos. A cada cem internações por parto, na capital baiana, ocorrem 25 em decorrência do aborto, número bem acima da proporção nacional que é de 15 para 100. A pesquisa "A realidade do aborto inseguro na Bahia", organizada pelo Instituto Mulheres pela Atenção Integral à Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos em parceria com Ipas Brasil, mostra que as mortes maternas estão incluídas entre as dez primeiras causas de morte de mulheres em idade fértil e representam uma grave violação dos direitos humanos das mulheres no estado. Até outubro de 2008, a cidade de Salvador contava com apenas um serviço de aborto legal para atender as mulheres vítimas de violência sexual com gravidez indesejada.

Em outro estado, Mato Grosso do Sul, continuam a ocorrer mais de mil processos contra mulheres que realizaram abortos desde o estouro de uma clínica clandestina em abril de 2007.

Os agentes policiais não respeitaram a privacidade das mulheres, não impediram a exposição indevida do conteúdo das fichas médicas e o seu manuseio por pessoal não qualificado. A legislação brasileira prevê procedimento específico para a investigação de registros médicos de pacientes, exigindo que as autoridades judiciais apontem um especialista para manusear os prontuários, com o objetivo de preservar o sigilo médico. Ignorando este procedimento, a polícia utilizou os registros médicos apreendidos de forma ilegal para investigar criminalmente milhares de mulheres suspeitas de terem se submetido a abortamentos ilegais.

Estes acontecimentos afetaram as vidas de milhares de mulheres que, hoje, estão sob investigação. Setenta delas já receberam sua sentença, e outras mais são acusadas diariamente. Muitas que ainda não foram processadas vivem com medo de serem investigadas criminalmente, podendo ter a sua vida privada revelada para suas famílias, seus colegas de trabalho ou o público de forma geral. Recentemente a imprensa noticiou que a médica irá ser julgada pelo Tribunal do Júri.

Até quando vamos continuar fingindo que o problema de saúde pública não existe, ou que o aborto é somente uma questão moral ou religiosa? A realidade está aqui bem perto de nós, é só visitar uma unidade de saúde pública próxima de nossa casa que atenda ao enorme volume de mulheres internadas ao mês para tratar de complicações derivadas de práticas inseguras.

Aí, sim, podemos começar a encontrar uma solução melhor para o problema do aborto, longe da esfera penal em que se encontra atualmente no Brasil.


FONTE: IPAS

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