julho 23, 2010

CRP-RJ promove roda de conversa sobre direitos da infância e juventude

O CRP-RJ realizou, no dia 9 de julho, a roda de conversa “Diálogos entre as práticas no Sistema de Garantia de Direitos à Infância e Juventude”. O encontro, que ocorreu na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), contou com convidados que atuam na área e incentivou a participação dos presentes no debate.

Dando início ao evento, a conselheira Eliana Olinda Alves (CRP 05/24612), presidente da Comissão de Justiça do CRP-RJ, destacou a importância dessa modalidade de debate, em que todos possuem voz. “Queremos que todos possam interagir. A ideia é debater o que é a Rede de Proteção à Infância e Juventude e o que somos nós nessa rede”.

Para instigar o debate, Eliana apresentou um caso real, atendido por ela na Vara da Infância de um município do interior. O objetivo era que cada um se identificasse com a história, pensando em suas práticas cotidianas.

O caso era sobre um menino que, aos quatro anos de idade, foi encaminhado pela escola ao Conselho Tutelar e diagnosticado por um psiquiatra com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Devido à medicação que passou a tomar, durante o início da aula e o recreio, a criança ficava sonolenta e, após o efeito passar, ficava muito agitada em sala, chegando a ter atitudes vistas como agressivas. Por isso, os pais foram processados judicialmente por negligência e, quando o menino já tinha 10 anos de idade, o caso chegou à sala da psicóloga da Vara da Infância.

“Descobri que a mãe era empregada doméstica e só tinha folga às quartas-feiras. A psicóloga que iria atendê-la só trabalhava às segundas. Então, a mãe não ia ao atendimento e a psicóloga atestou que os pais eram negligentes”, explica Eliana. “Ao longo nesses seis anos de processo, acabou se criando um ‘pequeno monstro’. Mas, quando ele chegou à minha sala, devido à idade e aos medicamentos, ele mal sabia o que se passava. Esse processo é uma ficção”.

A partir da apresentação do caso, os convidados falaram sobre ele e sobre o Sistema de Garantia de Direitos. André Rangel (CRP 05/19996), psicólogo do Centro de Formação da Associação Brasileira Terra dos Homens e membro da Comissão de Psicologia e Justiça do CRP-RJ, iniciou propondo uma reflexão sobre a articulação das práticas psicológicas na Rede de Proteção. “Percebemos práticas muito diferenciadas e, muitas vezes, antagônicas. A que interesses nós, psicólogos, estamos atendendo?”, questionou.

O psicólogo criticou ainda a denominação de psicólogos e assistentes sociais como “técnicos”. “Que técnico é esse? Parece que não há diferenças na formação. Ao mesmo tempo, cria-se um mercado de especialismos, que contribui para a fragmentação do serviço. Nossa atuação se torna individualizante, psicologizante e patologizante. Nos isolamos em nossa sala para fazer um laudo ‘técnico’, para responder demandas que chegam, mas sem refletir sobre elas”.

Achiles Miranda (CRP 05/27415), psicólogo da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) e membro da Comissão de Psicologia e Justiça do CRP-RJ, focou sua fala na importância da família no Sistema de Garantia. “O pensamento sobre a família e o território está instituído na assistência e deveria estar em toda a Rede. Mas isso não funciona na prática como princípio. No caso apresentado pela Eliana, a família já começou sendo responsabilizada, não acolhida”.

Ele lembra que esse pensamento está presente também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “No Estatuto, a proteção da criança é pensada a partir da cobrança de responsabilidade da família, mas não há mecanismos para cobrar ações do Estado. Tanto que, em todos os processos que já vi, o réu é sempre a família, nunca a Secretaria de Saúde ou de Assistência Social, por exemplo”. Segundo o psicólogo, isso reforça uma lógica da criança ser vista isolada da família. “É isso que o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) está tentando mudar”, acrescentou.

A psicóloga Giovanna Marafon (CRP 05/3781), mestre em Educação, doutoranda do Programa de Psicologia/Estudos de Subjetividade da UFF e membro da Comissão de Educação do CRP-RJ, abordou a judicialização da vida escolar. “No caso trazido pela Eliana, dessa ‘biografia infame’, como diz Michel Foucault, temos que pensar como essa criança virou um ‘monstrinho’. Ele foi colocado pela escola como violento, diagnosticado com TDAH, medicalizado e, enfim, encaminhado para a Justiça”.

Ela ressalta que, nesse caso, a instituição de Saúde apenas confirmou o diagnóstico sugerido pela própria escola. “A escola faz parte da Rede de Proteção à Infância e Juventude. Mas será que ela está mesmo inserida na Rede? Ou entra apenas para identificar problemas? Como se coloca, por exemplo, em relação ao Conselho tutelar? É uma relação de parceria ou hierarquizada?”, questionou.

Para Giovanna, situações como essa devem ser pensadas a partir da lógica que se faz presente nas escolas. “Como o professor vem sendo preparado para identificar no corpo do seu aluno anormalidades, transtornos? Ele vem sendo formado a partir de saberes biologizantes, medicalizantes e, cada vez mais, judicializantes”. Nesse último ponto, a psicóloga esclarece que não se trata apenas do encaminhamento ao Poder Judiciário, mas às próprias práticas cotidianas. “Quando a escola se utiliza de punições, transferências, advertências ela também se utiliza do micropoder judicializante”.

Em seguida, a psicóloga Esther Maria de Magalhães Arantes (CRP 05/3192), membro da Comissão de Direitos Humanos do CRP/RJ, do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) e professora da PUC-Rio e da UERJ, destacou a fragilidade em que se encontra o Sistema de Garantia de Direitos à Infância e Juventude. Ela exemplificou com a atual situação do CEDCA. “Nesse contexto de mudança das secretarias devido às eleições, a conselheira presidente do CEDCA foi demitida há quase dois meses e o Governo do Estado ainda não nomeou outro conselheiro para ocupar seu lugar. O CEDCA está acéfalo”, afirmou.

Ela abordou ainda as mudanças trazidas pelas normativas com relação aos direitos da infância e juventude. “O caso que a Eliana trouxe nos leva a uma discussão muito séria sobre quais são os direitos da criança e do adolescente. Até o século passado, a proteção da criança era muito ligada aos pais. Com o ECA e a Convenção da ONU, de 1989, para além da proteção, a criança ganhou direitos de liberdade, tradicionalmente dados aos adultos. Ela tem direito de participação, de ser ouvida, de ter autonomia. Claro que são vistas como pessoas em desenvolvimento, mas nunca com um viés tutelar e de assujeitamento”.

No entanto, conforme apontou Esther, a escola ainda não se adaptou essa mudança de paradigma. “Historicamente, a educação é autoritária. A escola tem dificuldade de dar à criança liberdade de exercer sua autonomia, sua criatividade. O caso de uma criança que não consegue aprender, em vez de ser resolvido pedagogicamente pela escola, é encaminhado ao Conselho Tutelar. Falta qualificação dos profissionais para saber o que é papel da escola, do Conselho Tutelar, da Saúde etc.”

Fechando a mesa, Antônio Pedro Soares, advogado do Núcleo de Políticas Públicas e Controle Social - ODH Projeto Legal, falou sob o ponto de vista do Direito. “No caso trazido, o Sistema de Garantia acabou sendo um violador de direitos da criança. Ainda vivemos a ideia de que os direitos da infância e juventude estão ligados somente à Assistência Social. A Assistência é um deles, mas há vários outros. Precisamos entender os direitos da criança como universais e transversais”.

O advogado retomou ainda o tema, trazido por Achiles, da falta de responsabilização do Estado. “Vivemos em uma sociedade em que os instrumentos jurídicos de cobrança em relação ao Estado são muito poucos, não só no Sistema de Garantias, mas em qualquer política pública”. Ele ressalta que um desses poucos mecanismos é o Ministério Público, mas seus profissionais raramente possuem um entendimento de onde vêm os direitos da criança. “Os concursos públicos de Direito valorizam conhecimento técnico em detrimento do filosófico”.

Após as falas, foi aberto o debate com os presentes. Uma professora de Psicologia de uma faculdade de Direito levantou a importância de, além de desconstruir a lógica atual, trazer novas possibilidades e exemplos de casos que estejam dando certo. “Muitas vezes, falo para os meus alunos que precisamos desconstruir, mas sinto dificuldade em dizer o que devemos colocar no lugar”.

Respondendo à questão, Giovanna ressaltou que não há “receita de bolo”, pois em cada caso há possibilidade de construir um novo modelo, que não necessariamente se encaixará em outras situações.

Outro ponto trazido por um participante foi a questão do psicólogo enquanto técnico, colocando-se diante do outro para inquirir, não escutar. “Coloca-se o outro dentro de categorias, perde-se a espontaneidade”, declarou ele. Nesse contexto, também foi destacado que esse profissional vem sendo visto como instrumento da Justiça, como nos casos do exame criminológico e do depoimento sem dano. Por isso, colocou-se a importância das resoluções publicadas recentemente pelo CFP que proíbe o psicólogo de participar dessas modalidades.

Outros temas debatidos foram a falta de articulação entre profissionais na Rede de Cuidados, dificuldades do psicólogo no campo da Assistência, a Reforma Psiquiátrica voltada para a infância e juventude e a hierarquização na Justiça, com Psicologia e Assistência sendo vistas como ciências auxiliares.

Eliana Olinda encerrou o evento com uma avaliação positiva do debate. “Essa é uma primeira conversa. Temos que ter consciência de que o CRP somos todos nós, não é só um órgão representativo. Nesse primeiro momento, fizemos uma provocação, mas esperamos que vocês também nos provoquem. Espaços como esse também são de produção de rede”.


Fonte: CRP-RJ
Texto: Bárbara Skaba

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