agosto 29, 2008

Gravidez traumática

Médicos são reféns em casos de anencefalia, diz CFM

Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2008

No segundo dia de audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre a interrupção de gravidez de fetos sem cérebro, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz D´Ávila, criticou duramente o que chamou de “judicialização da medicina”. Ou seja: o fato de as mães terem de recorrer à Justiça para abortar o feto anencéfalo. Ele defendeu que a mulher tenha o direito de decidir pela antecipação ou não do parto nesses casos. O relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio Mello, disse que a questão deve ser julgada até novembro.

O advogado Luis Roberto Barroso, representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que ajuizou a ADPF, perguntou ao presidente do Conselho Federal de Medicina qual o sentimento de um profissional diante da possibilidade de ser processado criminalmente caso faça a interrupção do parto. Roberto D´Ávila classificou a situação como “terrível”. Ele disse que o Conselho não pode orientar os médicos para que desobedeçam a lei.

“Estamos reféns. Precisamos de uma decisão definitiva com o entendimento que estamos agindo em benefício da paciente respeitando aquelas que desejam manter a gravidez até o final e respeitando aquelas que não desejam. Entendemos que não é crime [a interrupção da gravidez], que estamos fazendo o bem e pretendemos que esta questão seja resolvida”, afirmou.

O ministro Marco Aurélio interveio. Perguntou a partir de que momento os exames podem constatar a ausência de massa encefálica num feto. Roberto D´Ávila respondeu: a partir da décima semana de gestação.

O representante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o médico Jorge Andalaft Neto, disse que há “grande concordância” entre ginecologistas sobre a interrupção da gravidez de fetos com malformação.

Andalaft Neto mencionou pesquisa que teve participação de 4.320 ginecologistas da Febrasgo. Destes, 83,5% consideram que esse tipo de gestação representa um risco físico e mental para as grávidas e deve ser evitada.

Ainda segundo o médico, que é professor titular de Obstetrícia e Gginecologia da Universidade de Santo Amaro (Unisa), em São Paulo, e doutor em Obstetrícia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), as sociedades internacionais de ginecologia e obstetrícia também concordam sobre os riscos à saúde da mulher. Assim, concluiu ele, não é o Judiciário quem deve cuidar dessa questão.

Andalaft disse que a má formação cerebral é mais freqüentemente diagnosticada no primeiro trimestre da gestação. E que, a partir do diagnóstico, os médicos e as mães passam a vivenciar uma situação dramática.

“Precisamos saber conduzir cada caso de anencefalia”, sugeriu o médico. Entre os perigos que as grávidas correm estão o significativo aumento de morbidade (conjunto de causas capazes de produzir uma doença) e de riscos obstétricos no parto e no pós-parto.

O representante da Febrasco apontou, ainda, que estudo conduzido pela Universidade de São Paulo com 80 grávidas de anencéfalos mostrou que apenas 2,8% das mulheres não sofreram complicações relacionadas com a gravidez.

Casos freqüentes

O presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica, o geneticista Salmo Raskin, apresentou na audiência pública uma explicação técnica sobre como ocorre a anencefalia. Segundo ele, a cada três horas no Brasil nasce uma criança anencefálica. “Estamos falando de algo extremamente freqüente. No Brasil, isso é muito comum”.

Raskin afirmou que a anencefalia tem prevalência maior em fetos do sexo feminino e pode estar associada a mais de 20 síndromes genéticas. Ele também descartou a possibilidade de reaproveitar órgãos desses fetos para doação.

O geneticista disse que esses fetos, geralmente, morrem muito rápido e não haveria tempo de transplantar. Isso porque os procedimento em recém-nascidos não podem ser feitos antes sétimo dia de vida. Ele ponderou, ainda, que os órgãos, geralmente, estão comprometidos.

Ao responder ao advogado Luis Roberto Barroso, o presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica registrou que a doação não pode ser feita porque os fetos são portadores de múltiplas má formações. Além disso, os órgãos são menores e não podem ser aproveitados para o transplante. “Manter a vida do anencéfalo artificialmente para retirar os órgãos é questionável eticamente”, finalizou Salmo Raskin.

Argumentos contrários

O deputado federal Luiz Bussuma (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto, manifestou-se contrário à antecipação do parto de fetos anencéfalos. Ele disse que liberar essa possibilidade é “abrir precedente para que se faça o mesmo em casos de outras deformidades, como a síndrome de down”.

“Estaremos abrindo uma janela para abortar quem tem síndrome de Down, ou matar uma criança que sofreu uma grave queimadura simplesmente porque não é mais esteticamente perfeita”, disse o parlamentar.

Sobre um eventual conflito com o STF na legislação do tema, Luiz Bussuma rebateu o dado de que o Congresso Nacional esteja omisso. “Tramitam hoje no Congresso mais de 30 projetos sobre o aborto, inclusive o 4.403/04, que trata de legalizar o aborto de anencéfalos”, disse o deputado baiano.

O próprio congressista é autor de um projeto de lei que prevê punição nos casos de retirada de fetos concebidos por estupro. “O estuprador comete um crime hediondo e é colocado fora do convívio social, mas quem recebe a maior punição – de morte – é a criança, ou seja, por causa de um crime estamos cometendo outro muito mais grave”, comentou.

O caso

A audiência pública terá seqüência no próximo dia 4 de setembro. Na ação que tramita no Supremo (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54), a CNTS argumenta que a permanência de feto anômalo no útero da mãe é perigosa. E mais: pode gerar danos à saúde da gestante.

A CNTS defende, ainda, que “impor à mulher o dever de carregar, por nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana (artigo 5º da Constituição Federal) – a física, a moral e a psicológica – e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde”.

O processo chegou ao STF, em 2004, e foi distribuído para o ministro Marco Aurélio em 17 de junho do mesmo ano. Em decisão liminar, datada de julho de 2004, o ministro autorizou, liminarmente, o aborto de fetos sem cérebro. No entanto, em outubro, a liminar foi cassada pelo Plenário do Supremo.

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