Dois escritores que se dedicaram a explorar as dimensões psicológicas e filosóficas de gêneros literários muitas vezes desprezados — o romance de espionagem e a ficção científica — são os personagens principais do novo livro do psicanalista Jurandir Freire Costa, “O ponto de vista do outro: Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Philip K. Dick” (editora Garamond), que chega às livrarias na quarta-feira. Admirador de ambos, Jurandir enxergou nas obras de Greene, como “Fim de caso” e “O cerne da questão”, e Dick, como “O homem duplo” e “Andróides sonham com carneiros elétricos?” (que inspirou o filme “Blade Runner”), uma forma diferente e mais acessível de expor aos leitores suas reflexões sobre dilemas morais contemporâneos.
Em entrevista ao GLOBO em seu consultório, em Copacabana, Jurandir fala com empolgação do primeiro livro em que toma a literatura como tema e explica o que o levou a aproximar dois autores tão diferentes. Para o psicanalista, o britânico Graham Greene, um católico atormentado que expunha nos romances suas dúvidas e angústias quanto à moral tradicional, e o americano Philip K. Dick, que se transformou num ícone acidental da contracultura por suas experiências lisérgicas e tramas distópicas povoadas de androides e conspirações, têm em comum o fato de falarem sobre “a ética num mundo desencantado”.
— Greene fala do ponto de vista de uma sociedade europeia tradicional que testemunha os extertores do sistema de valores pelos quais se guiava. A obra de Dick é o prenúncio de um novo momento, mas no qual ainda há espaço para valores éticos. A grande tese de Dick é que, uma vez que não podemos saber o que é o ser humano, nem o que é realidade, qualquer ideia fixa sobre o que é real ou o que é o sujeito é destruída. Diante disso, o que resta? A liberdade, a espontaneidade, o agir moral, a preocupação com o outro — diz Jurandir.
Nesta entrevista, Jurandir expõe sua concepção de ética, que passa por uma relação necessariamente instável e arriscada com os outros e pela recusa de certezas absolutas, e defende a relevância prática da obra de filósofos como Giorgio Agamben, Jacques Derrida e Slavoj Zizek, citados em “O ponto de vista do outro”. Às vésperas da eleição presidencial, o psicanalista diz que o debate político se concentra mais em soluções pragmáticas para questões urgentes do que na discussão sobre o bem comum e afirma que “só se pode julgar uma sociedade pela maneira como ela trata os desvalidos”.
No livro você diz que sua concepção de ética está entre “a obediência à moralidade válida para todos e o respeito à inclassificável singularidade da pessoa”. Como se equilibrar entre esses dois polos?
JURANDIR FREIRE COSTA: A riqueza dos autores com que trabalhei, tanto os teóricos quanto os romancistas, reside no fato de eles não quererem contornar essa dificuldade. (Os filósofos Giorgio) Agamben, (Slavoj) Zizek e (Jacques) Derrida acreditam que a grandeza da ética está no fato de você correr permanentemente esse risco, de ser o tempo inteiro levado a discernir quando é preciso fazer exceção àquilo que você aceita como principio básico de condução da sua vida. Eu faço uma distinção entre moralismo e ética. Moralismo para mim é um tipo de atitude em que o indivíduo cristaliza uma dessas posições a que você se refere, e a partir disso ele não sabe mais negociar com a realidade e as circunstâncias — ou opta pela moralidade em relação aos outros ou pretende arbitrar continuamente aquilo que deseja. São duas posições negativas.
Como essas questões aparecem nas obras de Graham Greene e Philip K. Dick?
JURANDIR: Os dois falam da ética num mundo desencantado. Greene representa, a meu ver, o universo de dilemas éticos tradicionais, aqueles com os quais lidávamos até 1968. Ele trata das grandes questões de natureza politica, por um lado, e individual e amorosa, por outro. Seus livros têm discussões em torno do liberalismo, do socialismo, da democracia, do valor da política enquanto atividade humana que contempla o agir ético do indivíduo. E Greene também pensava as questões amorosas da forma tradicional como nos habituamos a vê-las, em termos de traição e fidelidade, ou refletindo sobre o que é o amor, como se vê em “Fim de caso”. No universo de Greene, a Justiça é o que vale para todos e o amor é o que singulariza, é aquilo que extrai da moralidade válida para todos a atitude que atende a uma necessidade individual não prevista no código.
Esse universo de dilemas éticos tradicionais representado por ele ainda existe?
JURANDIR: Diz-se que deixamos de viver nesse universo onde tínhamos regras de condutas claras e dispúnhamos de valores que nos orientavam na escolha entre o bem e o mal. Diz-se que estaríamos perdendo isso no mundo desregulado de hoje, onde a política é irrelevante, as relações amorosas tendem a se fragilizar, e a preocupação com o corpo e as experiências de alteração da percepção, além das grandes mudanças da economia e a quebra das ideologias, estariam fazendo com que não soubéssemos mais o que é certo e errado. É contra isso que eu escrevi esse livro. E para dar um exemplo do que é nosso mundo “desregulado”, tomei a ficção de Dick, que cria uma versão radicalizada disso, para mostrar que mesmo em nosso novo universo as preocupações éticas ainda existem.
Como Dick faz isso?
JURANDIR: A grande tese de Philip K. Dick é que, uma vez que não podemos saber o que é o ser humano, nem o que é realidade, qualquer ideia fixa sobre o que é real ou o que é o sujeito é destruída. Diante disso, o que resta? A liberdade, a espontaneidade, o agir moral, a preocupação com o outro. Quando Dick fala do que ele chama de “universo humano”, descreve o sujeito ético como aquele que é sensível ao outro, o antiandroide. Nos livros dele, o androide tem essencialmente três características: é indiferente ao outro; usa o outro instrumentalmente; e é incapaz de fazer exceção. “Androide”, para Dick, é a uma figura usada para falar de um ser que não tem nem liberdade nem capacidade de agir moralmente.
Você já tinha trabalhado com textos literários antes? Por que usou esse método no livro novo?
JURANDIR: Nunca tinha trabalhado com ficção, mas, como a maioria das pessoas, tenho uma relação de fascínio com a literatura. Greene e Dick me interessam porque têm uma imaginação muito próxima da realidade, por mais que isso possa parecer escandaloso em se falando de Dick (risos). Mas se você encara a realidade com o olhar dele, começa a estranhar tudo que se passa ao redor. Busquei a literatura porque não queria fazer um trabalho que fosse ilegível para a maioria das pessoas. Por isso, coloquei as seções mais técnicas em apêndices no fim do livro, para que o especialista possa ler e identificar as fontes. Se você entra num autor como Derrida e não é um especialista, pode se sentir derrotado desde o início. Eu queria que os leitores pudessem entender e sentir que esses filósofos têm contribuições à vida delas, principalmente Derrida, que é de quem me sinto mais próximo.
E qual pode ser essa contribuição de Derrida?
JURANDIR: A ideia de que nossa vida nunca vai ser uma trajetória em céu de brigadeiro (risos). Derrida fala da Justiça como risco e da ética como um “perigoso talvez”. Toda aposta ética é sem garantia, porque se você exige garantias, dá um passo atrás em direção ao moralismo. Ou nós corremos esse risco juntos ou vamos perder a face humana do mundo. Isso vale para a justiça, para o amor, para tudo. Podemos fazer uma comparação. Hannah Arendt forjou uma expressão que se tornou corrente, “a banalidade do mal”, que não significa que o mal seja banal, mas que quem faz o mal não está à altura dele: a intensidade e a profundidade do mal escapam a seus autores. Podemos dizer que Greene e Dick falam da “grandeza do bem”. Na atitude ética, também estamos muitas vezes abaixo das consequências dos nossos gestos.
Como assim?
JURANDIR: Em “O homem duplo”, por exemplo, Dick fala de um garoto drogado e imprestável, que um dia vê um mecânico debaixo de um carro e percebe que o macaco está escorregando e vai cair nele. Então aquela criatura, que parecia mergulhada na inércia, pula e salva a vida do mecânico. Nada faria prever que aquela pessoa fosse capaz desse gesto de altruísmo e dádiva em relação ao outro. O que quero dizer é que todos podemos ser agentes da banalidade do mal e da grandeza do bem. A ética é sempre uma aposta arriscada, e desse risco não podemos fugir. Se nos colocamos numa posição tranquila temos sempre certeza de tudo, e isso nos joga no moralismo, na brutalidade e na desumanidade. A grandeza da ética reside justamente no fato de que ela não é uma atitude que tem meios adequados a fins. Não é calculável, nem previsível.
Você fala na ética como o contrário das certezas absolutas. Como viu o debate eleitoral deste ano, que foi marcado por posições entrincheiradas num momento em que se esperaria diálogo e preocupação com o bem comum?
JURANDIR: Acho que isso é inevitável. Os valores mais básicos muitas vezes se diluem nas conjunturas eleitorais e não são abordados. Os candidatos são pragmáticos e estão preocupados com soluções para questões urgentes. De outro lado, porém, você tem os fundamentos éticos que dão conta do que quero para mim, de como devo conduzir minha vida e torná-la mais feliz, como devo me relacionar com o outro. A eleição passa e essas coisas ficam. Os governos vão e vêm, e as pessoas continuam vivendo, sendo responsáveis umas pelas outras e, sobretudo, pelas novas gerações. Meu ponto é: não obstante a volatilidade de governos, partidos e mercados (risos), o que fazer para continuar num caminho que nos permita dormir à noite com a consciência tranquila? Minha preocupação é com isso, mais do que com qualquer situação conjuntural.
Mas a conjuntura das eleições também é um momento em que as questões éticas se colocam, não?
JURANDIR: Claro. Quero que alguém que se candidate a representar o bem comum tenha responsabilidade por isso. Mas insisto que para mim a questão fundamental é trabalhar as coisas que concernem o indivíduo em sua relação com si mesmo e o mundo, e tudo que ultrapassa essas conjunturas. O que importa, no fim das contas, é a ideia de igualdade e justiça. (O filósofo Zygmunt) Bauman coloca isso de uma maneira muito feliz. Numa entrevista, perguntaram a ele como julgar uma sociedade. Ele respondeu que só se pode julgar uma sociedade pela maneira como ela trata os desvalidos. Se você olha a sociedade pelo lado de quem é favorecido, então o Egito Antigo era perfeito e a França de Luis XVI também. Mas Bauman diz que devemos olhar para o lado de cá e pensar que quanto menos houver opressão, discriminação e exclusão, melhor será a sociedade. Para mim, essa é a medida.
FONTE: OGlobo
novembro 04, 2010
Jurandir Freire Costa: 'A ética é sempre uma aposta arriscada'
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