abril 15, 2008

Entrevista, Relação de Poder e Discurso da Verdade

ARTIGO

Entrevista, Relação de Poder e Discurso da Verdade


A juíza Adriana Costa dos Santos, da 19ª Vara Cível do Rio, condenou a TV Globo a exibir na íntegra uma fita levada ao ar na novela "Páginas da Vida" em que a doméstica Nely Passos dá um depoimento dizendo que se masturbava.

A Central Globo de Comunicação afirmou por meio de nota que já recorreu e aguarda decisão judicial.

O depoimento, com duração de cerca de 90 minutos, foi editado pela emissora, que colocou no ar apenas a parte na qual Nely faz essa declaração, causando-lhe constrangimento perante familiares e amigos com quem ela assistia ao programa.

Nely conta no processo que foi procurada por um preposto da emissora em seu local de trabalho para gravar um relato sobre fatos relacionados à sua vida e que deveria ir ar no final de um dos capítulos da novela Páginas da Vida. Caso seu depoimento fosse veiculado, ela receberia R$ 300. No depoimento, Nely respondeu a perguntas sobre vários aspectos de sua vida, inclusive como era a sua vida sexual.

Na contestação, a TV Globo alegou que a entrevistada autorizou a exibição da fita e que não possuía mais a gravação integral, apenas a parte que foi ao ar. A juíza, no entanto, julgou procedentes os pedidos de Nely, obrigando a TV Globo a exibir, no prazo de 20 dias após a publicação da sentença, a fita com a gravação completa do depoimento, sob pena de multa diária de R$100, limitada a R$ 50 mil. Como a emissora entrou com Embargos de Declaração contra sentença, a execução está suspensa até que a juíza se manifeste sobre o recurso. A TV Globo pode ainda apelar ao Tribunal de Justiça.

A autora da ação havia arrolado como réus, além da TV Globo, o autor da novela, Manoel Carlos Gonçalves de Almeida, o diretor Jayme Monjardim Matarazzo e Gustavo Nogueira, que a entrevistou. A juíza, porém, considerou que os três são meros representantes da emissora e não possuidores do material gravado, não podendo ser condenados à exibição do material que não possuem.


Em Última Instância
Quinta-feira, 6 de março de 2008


Resolvi colocar essa nota por conta de uma discussão que alunos de pós-graduação (mestrado e doutorado), durante aula de Foucault, fizeram acerca do que é uma "entrevista" e do que o entrevistador faz com esse material...

Noventa minutos de entrevista e alguns poucos minutos de apresentação.. o que significa isso? Um recorte, tá mais do que claro. A questão principal é: como fazer o recorte de uma entrevista? O que deve ser levado em consideração?

Alguns aspectos principais devem ser pensados para toda e qualquer entrevista, incluindo a entrevista psicológica para avaliação ou para pesquisa.

Qual o objetivo da entrevista? Essa pergunta deve ser feita e respondida, inclusive, para o entrevistando, que deve estar ciente acerca do que será abordado.

Todo recorte tende a descontextualizar a fala do entrevistado, de modo que é preciso ter o cuidado quando se apresenta este recorte para que a fala não fique sem sentido, distorcida, ambígua, transmitindo dúvidas ou certezas pautadas em afirmações taxativas - que podem não ter sido feitas.

O responsável pela entrevista nunca é "neutro", pois participa tanto na elaboração das perguntas quanto na forma de apresentar as respostas. Está, obrigatoriamente, dirigido por seu interesse em saber de algum assunto, obter algum dado específico, investigar certo aspecto, ou seja, seu "olhar" está dirigido a algum ponto, de modo que "outros pontos" podem e vão passar sem a menor atenção ou a atenção merecida.

Na seleção das respostas, é possível esbarrar em um problema maior: o entrevistador, nesse momento, sai da esfera dos fatos e passa à esfera da interpretação. Na tentatida de compreender, de atribuir um significado ao que foi dito, o entrevistador "pula dos fatos para a interpretação: "Os fatos não oferecem sua própria iluminação" (Rubem Alves, Filosofia da Ciência, 2005, p.142).

Os fatos não falam por si, sendo o entrevistador quem fala por eles e pelo entrevistado: fala por meio de sua compreensão, seu "olhar dirigido" às histórias, aos eventos narrados, em especial, àquela parte em que estava todo o seu interesse.

Pelo viés da teoria e de técnicas psicológicas - na medida em que também não se constituem como saber neutro - o psicólogo produz um conhecimento, um saber que o coloca em uma relação de poder com o outro.

Esse saber, provindo do "exame", ordenado em torno da norma pelo controle dos sujeitos, tornou-se a base do poder, “a forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, etc” (Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, 1996, p.88).

Assim, a Psicologia surgiu como uma instituição de vigilância, interessada na aplicação de técnicas de exame para a aquisição de um saber sobre o outro (descrever e classificar o comportamento, assim como fazer previsões), instaurando uma tecnologia voltada para o poder e controle social.

O profissional do psicólogo – que se mantém no lugar de espectador inquestionável, detentor do saber-poder sobre seu objeto de estudo em busca da verdade – sustenta o imaginário moderno, no qual vigora a "utopia da Razão". Trata-se da crença de que todos deveriam viver segundo a Razão, repudiando os apelos da paixão e da fé, acreditando apenas no intelecto que julga com isenção e imparcialidade.

Essa pretensa neutralidade político-ideológica é uma ilusão criada pelo método científico que visa aniquilar o "humano" dos estudos humanos, tornando-se, nada mais que um processo alienante, conservador e acrítico, pois não exige do profissional o exercício da reflexão, mas da reprodução de um discurso de cunho explicativo-causal pautado nas técnicas de exame.

É preciso lembrar que toda escolha feita pelo psicólogo por uma técnica ou teoria é necessariamente política e, portanto, deve se remeter à ética. Em outras palavras, a entrevista (ou técnica de entrevista psicológica) é um instrumento que implica na aquisição e aplicação de um determinado discurso que permite fazer descrições ou oferecer explicações dos fenômenos, visando a algum fim. O que significa dizer que "não há conhecimento sem interesse. Não há exercício sem uso de poder. Não há prática sem pressupostos e conseqüências políticas [portanto, éticas]” (Bezerra Jr., Prefácio. In: CAMPOS, F.C.B. (org). Psicologia e Saúde: repensando práticas, 1992, p.09).

Recordemos o clássico da literatura, “Alice através do Espelho”, de Lewis Carroll. Há um diálogo entre Humpty Dumpty e Alice que ilustra esse ponto de discussão.


-Não sei bem o que o senhor quer dizer com “glória”, disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém. -Claro que não, até que eu lhe diga. Quero dizer: é um belo argumento arrasador para você!
-Mas “glória” não significa “um belo argumento arrasador”, objetou Alice.
-Quando EU uso uma palavra, disse Humpty Dumpty, num tom de deboche, ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique, nem mais, nem menos.
-A questão, ponderou Alice, é se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
-A questão, replicou Humpty Dumpty, é saber quem é que manda.


Assim, o entrevistador, o psicólogo avaliador que oferecer interpretações dos fenômenos humanos que estejam desimplicadas da compreensão do mundo social e histórico corre o risco de produzir um discurso tão onipotente, alienante quanto equivocado, à semelhança do discurso de Humpty Dumpty.

Contudo, nem sempre é possível oferecer a entrevista completa ao público, apresentar-lhe todas as implicações sociais, políticas, pois é preciso lembrar que não possuímos esse olhar totalizador (pelo contrário, nosso olhar é reducionista), além do que algumas informações devem ser protegidas, como nomes, entidades, principalmente se forem crianças, neste caso, também a imagem.

Assim, o recorte deve, por uma questão de respeito e ética, fornecer apenas as informações necessárias, como nos dita o Código de Ética, evitando fazer afirmações taxativas ou mesmo expor de forma vexatória as pessoas entrevistadas.

Mediante a pluralidade de discursos psicológicos, no qual cada um oferece certezas de todos os tipos, variando conforme variam as visões de homem, só resta fazer a pergunta: qual desses discursos, dentre as diversas teorias e técnicas psicológicas, é capaz de assegurar ao psicólogo o êxito em capturar a verdade?

Neste sentido, não é possível se falar em verdade, tampouco é possível afirmar a supremacia de um modelo teórico ou técnico, de modo que não há um critério de verdade, sendo este um problema sem solução.

Informações bibliográficas:

AMENDOLA, Marcia Ferreira. Entrevista, Relação de Poder e Discurso da Verdade. 12 março de 2008. Disponível em http://canalpsirevista.blogspot.com.

0 comentários: